“Posso ser ninguém para você. Mas e você, quem é mesmo?”
Imagem meramente ilustrativa.
Quem sou eu? Ainda não tenho a capacidade de responder a essa questão com a precisão exigida, mas se deseja mesmo saber, posso lhe dizer o que sei: alguns homens mais espiritualistas cogitam que sou uma espécie de espírito desencarnado e desmemoriado, outros que sou a personificação da quintessência, ou então a expressão material do æther. Já alguns acadêmicos tentam racionalizar afirmando que sou um ser metafísico interdimensional arrancado de um plano de existência além da compreensão humana… quem sabe? Talvez. Para ser franco, não me importo suficientemente com nenhuma dessas definições para me apegar a elas, pois acredito apenas em uma premissa para poder me definir: minhas próprias ações definem quem sou eu.
Entretanto, caso deseje que eu responda essa questão a partir da perspectiva histórica, posso lhe contar agora. No princípio, havia eu, apenas eu e nada mais, inerte em minha própria existência até ser sugado contra minha vontade num rito místico sobrenatural, transportado para uma realidade peculiar, ainda diferente dessa sua, na qual o sistema monárquico de Estado nunca teve fim no Brasil. Foi um momento particularmente difícil para mim, para conseguir assimilar tudo o que estava acontecendo quando fui capturado, pois muitas informações corromperam meu entendimento: som, luz, odor, sabor, textura, calor, pressão, energia, espaço, tempo… conceitos até então inexistentes para mim. Experimentei todas essas sensações pela primeira vez simultaneamente, e apesar de demorar um pouco, consegui compreender cada uma delas graças a tutoria de meus captores.
O responsável pelo meu sequestro foi o autodeclarado santo, Lúcio Kadabra, conselheiro e místico do imperador do Brasil, Dom Pedro II, responsável por curar seu primogênito de uma doença mortal. O estudioso das artes místicas planejou minha captura para que pudesse obter conhecimentos místicos dos quais não fui capaz de fornecer conforme solicitava, ao menos não naquele tempo, motivo pelo qual eu fui negligenciado e mantido sob os cuidados de seus asseclas inferiores, responsáveis pela criação do protótipo de um traje de contenção que me permitia interagir com o ambiente ao meu redor.
Quando enfim fui liberto por insurgentes anti-monárquicos, aprendi e interagi mais com este novo mundo, recebendo ensinamentos da filosofia humana com esta nova coletividade. Ética, moral, lógica, justiça… achei particularmente irônico que estes humanos postulam regras para ditar o convívio social, às quais eles mesmos não conseguem obedecer. A partir do conhecimento sobre esses conceitos experimentei pela primeira vez o sentimento humano de indignação. Percebi que toda minha existência neste mundo foi marcada por injustiça e imoralidade cometidas contra mim.
Sob a luz que me trouxe esclarecimento, decidi tomar meu destino em minhas mãos e me aliei aos rebeldes contra o governo tirano do imperador Dom Pedro III e seu conselheiro Kadabra, mas agimos tarde demais. O místico havia se tornado o maior influenciador do império, fundando sua própria Ordem a partir da reunião dos maiores seres mágicos e entidades místicas sob o seu comando. Os planos de Lúcio Kadabra eram piores do que o imaginado, e com sua influência no império, deu início a primeira guerra mundial. Em poucos meses tornou o mundo em pura desordem e caos, e nestes tempos sombrios, pude sentir toda a dor, angústia, sofrimento e desespero do mundo. Como pode este ser fazer tão mal a si próprio e aos seus iguais? Ainda não entendi as motivações, mas ainda não cessou meu interesse e curiosidade em entender a natureza humana.
Meu companheiro Viajante me disse que esta realidade em que residia estava fadada à ruína e não valeria a pena permanecer ali enquanto outras realidades poderiam ser salvas. Será mesmo? Não sei dizer, sei apenas que ele me convenceu que minha existência o levou até a mim, para meu alistamento ao seu grupo de indivíduos singulares. Me convenceu que havia lutas ainda mais importantes que desafiavam o destino de realidades distintas da minha, e precisaria do meu apoio para que conseguisse ter sucesso em sua empreitada. A concepção sobre o multiverso soou interessante para mim. Talvez até mesmo para entender quem eu sou. Voltando ao início dessa conversa, se minhas escolhas me definem, eu escolhi prestar socorro ao multiverso. O que isso faz de mim? Ainda não sei dizer, e até descobrir essa questão, posso continuar sendo Ninguém para você.
João Carlos
Veja os defensores do Universo da Fábrica de Heróis